“I am free and that is why I am lost” É com a conceção do ser que começa a dívida. A quem? Aos pais, a Deus, ao mundo. O elemento ontológico de tudo o que existe deve, em igual medida, a sua realização a um mecanismo que o pôde criar. Nesse sentido, todo o corpo deve. Todo o movimento e toda a ação têm, no seu âmago, um movimento e uma ação a priori que assim o permitiram. Daí decorre que a consequência se submete à sua causa, que o corpo se verga perante o corpo maior, que o segundo nunca poderá intentar contra o primeiro: tal ocorrência seria uma verdadeira negação. Da dívida primeira, o ser vincular-se-á à sua própria lei e é desta lei que surgirá o fim último do viver. Semelhante às mariposas que existem por vinte e quatros horas e cujo único propósito é a reprodução de mais mariposas que, por sua vez, viverão apenas vinte e quatro horas, a reprodução nos seres vivos em geral tende para o restabelecimento desta dívida luxuosa de poder estar endividado através da disseminação de mais pequenos seres endividados. No fundo, estar vivo é estar obrigado a criar mais vida. A obrigação confere ao próprio objeto endividado uma identidade e finalidade – um dever. Daqui decorre a repartição da palavra “dívida” em duas partes: “dí” (prefixo grego que exprime a noção de dois ou de duas vezes) e “vida” (o estado ontológico em que me encontro ao escrever este trabalho). As duas vidas abordadas podem muito bem ser: primeiramente, a vida que me é concedida num ato de benevolência; e em segundo lugar a vida que se me afigura necessária criar, de forma a restabelecer a ordem natural das coisas. Ignoremos, de momento, a etimologia real da palavra, aliás proveniente do Latim “debita” - quantias devidas em dinheiro – e tornemos este texto bastante mais interessante. Numa espécie de conduta pela mimesis, fazemos os possíveis para “saldar” a generosidade divina que nos concedeu a vida, através de mais vida. Supra, defendi que, no mundo, o estado ontológico encerra em si a sua teleologia. Ora, esta forma de atuação difere do conceito de "Bem" presente n´A República de Platão, porque, para este, o "Bem" assemelha-se a uma conduta metafísica na medida em que trata da perfeição do ser enquanto tal (como aprendemos com o diálogo da personagem Sócrates e seus discípulos, Glauco e Adimanto, no “Livro VI”), ao passo que a obrigação 2 de conceder vida para repor a dívida da vida possui um teor qualitativamente mais normativo, egoísta e primário. Esta segunda apenas garante, num extremo, a simples continuidade da espécie. A adjetivação de “egoísta” advém do pressuposto factual da sobrevivência de uma espécie através da aniquilação de outra, de forma a garantir a satisfação de necessidades básicas. Tudo o que vive, quer viver. Da vontade de querer viver, os seres reproduzem-se, transmitem à respetiva descendência um pouco de si, e celebram portanto a satisfação parcial de uma dívida eterna em potência. Ao longo da literatura, muitas foram (e são) as formas que a dívida adquiriu. Na Oresteia de Ésquilo, por exemplo, a maldição hereditária dos atridas cessa somente através da intervenção da deusa “de garços olhos”. Curioso realçar que Orestes, no momento do seu nascimento, contrai instantaneamente a obrigação de vingar seu pai, e cometer o matricídio. A culpa hereditária vinga perante uma ética universal e consciente (cuja bússola se personifica nas Fúrias). Mas também Sófocles trata do tema de uma dívida “invisível”. Em Antígona, a personagem feminina e heroica reconhece como imperativa a ação de enterrar, condignamente, o cadáver de seu irmão Polinices. Porquê? Porque compreende a teia de leis morais e silenciosas que assim o ditam… Porque “(…) os preceitos, não escritos, mas imutáveis dos deuses(…)”1 vigoram sobre a lei tirânica, sobre a arrogância de comparar qualquer édito humano ao divino. Na leitura de "Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua", Giorgio Agamben explica que na exceção soberana trata-se, não de controlar ou neutralizar o excesso, mas de criar e definir o espaço no qual a ordem jurídica e política tem o seu valor. Tal afirmação enriquece-se quando aplicada à figura de Creonte. Realmente, é o soberano que confere a identidade e o espírito da lei, através da sua autodeterminação enquanto tal. Este “ortung”, a localização fronteiriça e cinzenta do ordenamento jurídico, legitima o próprio poder do ordenamento, pois permite ao soberano executá-lo. Percebemos o paradoxo do poder soberano como possível, conquanto o soberano não aja em sentido inverso à própria norma que criou. Creonte, ao apresentar o que os gregos chamavam de hybris (a arrogância, a loucura, a oposição ao logos), destrói toda a justificação do ordenamento político e jurídico, e por consequência até a possibilidade de ser legítimo o tal paradoxo de que Agamben fala. Em O Governo do Homem Endividado, de Lazzarato, a situação possui, também, a sua similitude. O presente texto aborda o período dos séculos XX e XXI e suas respetivas políticas económicas. Nele, estão descritas as forças neoliberais e a operação ao nível das mentalidades através do agente financeiro. Lemos, na página onze: “A crise e o medo constituem o horizonte insuperável de governamentalidade capitalista neoliberal”2 . Esta passagem lembra-nos, quase instantaneamente, outra de Antígona: “Todos os que aqui estão diriam também como aprovam este acto (do enterro de Polinices)3 , se o medo não lhes travasse a língua.”4 Comparámos o medo enquanto agente de manutenção política, tanto na figura tirânica de Creonte, como na imposição macroeconómica presente no livro de Lazzarato. E a dívida! A eterna dívida que contraímos sem saber, e que nunca conseguiremos bem saldar. Na hipótese improvável de os grandes capitalistas e dirigentes políticos verem recair sobre si a fatalidade grega que aos nossos antigos dramaturgos era tão cara, poderemos contudo possuir certezas acerca de algo: a dívida do Homem, para além de teleológica, adquiriu nos dias de hoje uma esfera interna de imputação: é criada pelo humano para si mesmo. O teor prescritivo da obrigação cessou a sua dependência sobre a relação do ser com o que o permitia ser “ser”, e substituiu-a pela relação entre o ser e sua eficiência, ou utilidade. A máquina que o trabalho coletivo tem vindo a alimentar não para de expandir os seus bolsos, nem se dá por satisfeita. E o Homem, por natureza endividado, continua a saldar as obrigações que se acumulam na caixa do correio. 1 SÓFOCLES. Antígona. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018. Pp. 34. Impresso. 2 LAZZARATO, M.O Governo do Homem Endividado.S.d. Disponível em https://issuu.com/n1publications/docs/livro_o_governo_do_homem_endividado. Consultado em 04 nov. 2020. Web. 3 Parêntesis meu. 4 SÓFOCLES. Antígona. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018. Pp. 69. Impresso. - Fontes Bibliográficas: - SÓFOCLES. Antígona. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018. Pp. 34, 69. Impresso. - Webgrafia: - AGAMBEN, G. Homo Sacer O Poder Soberano e a Vida Nua.S.d. Disponível em https://petdireito.ufsc.br/wp-content/uploads/2016/05/AGAMBEN-G.-Homo-Sacer-opoder-soberano-e-a-vida-nua.pdf. Consultado em 04 nov. 2020. Web. - LAZZARATO, M. O Governo do Homem Endividado. S.d. Disponível em https://issuu.com/n-1publications/docs/livro_o_governo_do_homem_endividado. Consultado em 04 nov. 2020. Web
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