Desde cedo que, na generalidade, as nossas famílias nos ensinam aquilo que entendem ser a nossa missão (ou as nossas missões) na vida terrena: crescer, estudar, trabalhar, casar, constituir família, etc. Perante essas “missões” que nos são incutidas, tendemos a criar todo um percurso que nos leve a concretizar as mesmas e que, pelo meio, possamos ser felizes com isso e orgulhar as nossas famílias. Também não há muito espaço para duvidar do facto de que os rapazes sentem esta transmissão de uma forma diferente daquela que as raparigas sentem. Os rapazes são incentivados desde cedo pela família e amigos a serem engatatões e a andarem atrás das “garinas”. Aqueles que são bons engatatões e conseguem arranjar namoradas com facilidade são normalmente apelidados de “Don Juans”. Não é incomum ouvir-se tias e mães a dizerem com um certo tom orgulhoso que seus filhos são “Don Juans”. Contudo, esta expressão, como qualquer expressão na Língua Portuguesa, tem uma origem (neste caso, uma origem literária). O tema da crónica deste mês da rubrica “Literatura Circular” girará em torno da origem e evolução literária e artística desta questão deveras “social”: ser um Don Juan. Primeiro que tudo, quem é realmente Don Juan? Don Juan (também conhecido pelo nome completo de Don Juan Tenorio) é uma das mais míticas personagens da Literatura Espanhola e da Literatura Universal. Tem sua origem em “O Burlador de Sevilha e o Convidado de Pedra”, uma peça de teatro que surge em Espanha por volta de 1616/1617 (as obras barrocas espanholas tendem a não ter uma data certificada) e cuja autoria é atribuída a Tirso de Molina, um monge madrileno nascido em 1579 que dedicou a sua vida à poesia e à dramaturgia na era barroca. A obra conta-nos a história de Don Juan Tenorio, um nobre espanhol que vive desterrado em Nápoles e que nos é apresentado como um jovem esbelto que seduz mulheres (nomeadamente jovens muito ricas ou muito pobres para se deitarem com ele) e as utiliza como meios para atingir seus fins. No primeiro ato, vemos o jovem a seduzir uma duquesa, escapando posteriormente através de burlas após ter sido descoberto. Acaba naufragando na sua fuga, mas obtém ajuda de uma pescadora através de promessas de ascensão social. Ao chegar a Sevilha, recebe ordens do Rei para se casar com a duquesa que burlara. No segundo ato, vemos um novo aliciamento por parte de Tenorio, desta vez feita a Dona Ana de Ulloa, sendo, contudo, descoberto pelo Comendador de Calatrava. Esta descoberta leva Don Juan a assassinar o mesmo e a fugir, seduzindo pelo meio uma noiva que encontra num casamento numa aldeia. Aqui, podemos ver o lado mais feroz de Juan Tenorio, banhado por desejo psicopático de evitar as consequências dos seus atos, desejo esse originado por uma ausência inexplicável de remorso na mente do protagonista (apesar do mesmo ter consciência da amoralidade dos seus atos). No último ato, assistimos à entrada de Don Juan numa igreja em Sevilha e a aliciar a estátua do comendador, convidando-a a jantar. A estátua, em jeito de “duplo convite”, aceita como forma de se vingar do mesmo, matando o nobre durante o jantar. Através das ações do protagonista, Tirso nos apresenta uma perspetiva moralista, perspetiva essa muito comum nas obras do período barroco. Porém, esta imagem do burlão (ou, como os ingleses dizem, o trickster) não é invenção do autor da peça. A mesma tem antecedentes literários em obras como “As mentiras de Celauro” (obra de 1614 de Lope de Vega que fala de toda uma cabala que Celauro monta para arruinar um casamento) e “A Montanha da Verdade” (obra de 1613 de Luís Vélez que fala das seduções que burlador comete, sendo o mesmo castigado no fim pelos seus atos). Ainda assim, a personagem trickster não é uma invenção puramente espanhola. Vemos o exemplo do rei Diomedes de Trácia, personagem da Mitologia Grega que convidava pessoas para seus manjares, matando-os no fim e dando os restos mortais às hienas para comerem (o tal “convite duplo”/convite com segundas intenções que falei acima). Na Irlanda pré-cristã (país com a tradição literária mais velha da Europa), temos um caso mitológico de trickster. Trata-se de Bricriu, poeta de Ulster (atual Irlanda do Norte) que é conhecido como um mentiroso compulsivo e como uma pessoa problemática (ou, como dizem os brasileiros, “encrenqueiro”). No clássico “A Festa de Bricriu”, podemos ver o mesmo fazendo promessa da “Porção do Campeão” a três guerreiros diferentes como prémio pela valentia. Esta promessa mentirosa faz com que os três reclamem o prémio e lutem por ele. Como disse na parte inicial da história, Don Juan é das personagens mais míticas (senão a mais mítica). Como se tornou tão mítica? Através das diferentes adaptações e inspirações que surgiram da obra de Tirso de Molina. Autores como Molière, Byron e Zorrilla fizeram os seus próprios Don Juans. Molière faz um sedutor quase igual ao original, só que este sedutor é descrente e só engana uma pessoa. Zorrilla cria um Don Juan diferente. O nobre criado pelo mesmo acaba por se apaixonar por uma das suas aliciadas. Este amor leva-o a arrepender-se dos seus pecados e a tornar-se crente antes de morrer. À boleia do sentimentalismo criado por Zorrilla, temos a versão de Lord Byron, poeta da segunda escola do Romantismo Inglês. O autor de “Manfredo” mostra-nos um Don Juan mais atormentado. Este Don Juan sofre de violência sexual por parte das mulheres (ou seja, não são as mulheres as vítimas da história). No fim da história, não existe um castigo moral. Ainda na Literatura, temos outros exemplos “donjuanescos”. Temos o caso de Dorian Gray, protagonista de “O Retrato de Dorian Gray”, clássico de Oscar Wilde. Aqui, vemos Dorian Gray como um personagem obcecado pelos padrões de beleza que acaba por namorar com uma jovem atriz chamada Sybil. Pouco tempo depois, livra-se da jovem, fazendo com que a mesma ponha termo à sua vida por desgosto amoroso. Apesar desta carga literária (que eu acredito que possa estar a maçar o leitor), Don Juan é um mito que transcende a Literatura. Uma das transcendências mais notáveis da figura “donjuanesca” é feita por Wolfgang Amadeus Mozart, um dos maiores gênios compositores da história da música. O mesmo cria uma grandiosa ópera chamada “Don Giovanni” (de cuja ópera o caro leitor poderá encontrar uma citação em epígrafe nesta crónica), onde Don Giovanni faz um percurso semelhante a Don Juan e tem um final idêntico. No cinema, temos também várias adaptações, sendo a mais notável “Don Juan DeMarco”, dirigido por Jeremy Leven, onde se introduz a personagem de um psiquiatra nova-iorquino que se apaixona por uma das pacientes e se torna disposto a matar em nome do amor. Este filme introduz-nos ao conceito patológico de “Síndrome de Don Juan”, uma patologia psiquiatra em que o doente é um sedutor compulsivo e sente prazer em seduzir. Posto isto (porque a crónica vai longa e não quero que se ache que eu sou um escritor pedante), introduzo caro leitor à seguinte problemática: porquê que chamamos tão orgulhosamente os rapazes “amorosamente mais abonados” de “Don Juans”? Porque tiramos nós um significado tão positivista de uma expressão com uma carga simbólica muito negativa? Sei que estas questões mexem muito com as pessoas mais conservadoras (ainda mais aquelas que mais anseiam por filhos e netos), mas é algo que me faz confusão e que não podia deixar de abordar nesta crónica (mesmo sabendo que temáticas inclinadas para o feminismo e para a masculinidade façam confusão a muitas pessoas). Há necessidade de estarmos a carregar os jovens rapazes com este estereótipo com origens tão negativas para conseguirmos assegurar a renovação de gerações? Se a necessidade é mesmo a renovação, então deve-se encontrar outras formas de incentivar a renovação para evitar carregar os jovens com esta figura donjuanesca. Talvez seja hora de se pensar nisso.
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"O Espelho de Stephen Crane: um retrato humanista feito pelo poeta" (reflexão por Raphael de Souza)29/12/2021
A civilização humana é um poema constante. Tenho em mim essa ideia. A humanidade em ação é um ato constante de poesia. A algazarra, a chinfrineira, os sentimentos, as emoções, as interações… tudo isto tem um brilho, uma sonoridade, um significado, uma ligação. O que será o poema para além de uma fonte de brilho, de sonoridade, de significado, de ligação? Assim de repente, recordo-me de uma passagem de um filme chamado “O Clube dos Poetas Mortos”, onde o Professor Keating (interpretado pelo eterno Robin Williams) reúne os alunos em sua volta e diz: “não lemos e escrevemos poesia por ser bonito. Lemos e escrevemos poesia, porque somos membros da raça humana. E a raça humana está repleta de paixão”. O mesmo acrescenta a tira “…poesia, beleza, romance, amor. É por isto que estamos vivos”. Para reforçar a sua mensagem, Keating cita um poema de Walt Whitman, o grande poeta dos Estados Unidos, do qual destaco esta passagem: “…que a vida existe… que a poderosa peça segue decorrendo e que tu podes contribuir com um verso”. Com isto, o professor instiga os alunos a escreverem poesia, a contribuírem para essa peça que segue decorrendo: a Humanidade. Eis a grande temática desta segunda crónica da novata rubrica “Literatura Circular”: a Poesia e a Humanidade. Contudo, para que o caro Leitor não leve isto como uma aula de Literatura Portuguesa do 10ºano, devo dizer que a crónica não será sobre a poesia no sentido teórico, muito menos sobre os devaneios de Keating. A crónica se debruçará sobre um poeta que, após passar uma eternidade nas margens do rio Lethes, saltou recentemente à vista do círculo literário: Stephen Crane. Stephen Crane foi um autor norte-americano nascido em 1871 em Newark e destacou-se como poeta e jornalista. Tendo começado a escrever aos 8 anos, começa também a carreira jornalística em Nova Iorque, atuando como freelancer. Mais tarde, parte para a Europa e trabalha como jornalista na Grécia. Trabalha também como jornalista em Cuba. Morre na Alemanha em 1900, vítima de tuberculose. Tinha 28 anos e, como morreu jovem, acabou por cair no esquecimento e não ter a merecida projeção. Paul Auster, aclamado romancista e conterrâneo de Crane, publicou no passado mês de Outubro “Um Homem em Chamas: A Vida e a Obra de Stephen Crane”, um longo livro de 864 páginas sobre o autor que sai do estilo literário tão caraterístico do próprio autor de “A Trilogia de Nova Iorque”. O próprio Stephen Crane também surpreende por não ser o tipo de autor que Paul Auster geralmente admira (Samuel Beckett, Franz Kafka, Liev Tolstoi…). Sendo a minha área de especialização académica a Literatura Norte-Americana e mantendo eu um fascínio pela obra de Paul Auster, fiquei radiante por ele ter lançado uma nova obra e fiquei curioso em relação a Stephen Crane. Contudo, como se trata de um livro muito extenso, um mês não chegaria para ler o mesmo de fio a pavio. Então, fui pesquisar sobre a poesia de Stephen Crane, poesia essa que achei interessante pelo seu teor de reflexão humanista. De toda a poesia existente, houve um poema que me chamou a atenção: “Vi um Homem perseguindo o Horizonte” (poema esse que o leitor poderá ler em epígrafe no início do artigo). Gostava de partilhar consigo, caro Leitor, as minhas ilações sobre o poema (peço perdão por induzir o caro Leitor nesta parte um bocadinho mais chata da Literatura que é a análise de poemas). No poema, temos dois homens: um homem observador e um homem “ativo”. A ação do poema é narrada pelo observador que vê o “ativo” fazendo algo que o mesmo considera uma futilidade, uma loucura: correr atrás do horizonte e tentar apanhá-lo. Vemos que o mesmo observador tenta alertar o homem em movimento sobre esse ato impossível (que é apanhar o horizonte) e a levar com uma reposta negacionista a tal facto por parte do “louco” que continua correndo. O mais interessante nesta história é a forma como a mesma reflete a necessidade e o desejo incontroláveis que o ser humano tem de se colocar acima dos seus limites físicos e existenciais. No fundo, nós, os seres humanos, não nascemos para sermos seres humanos. Pelo menos, pensamos que não nascemos para o sermos. O Homem tenta por todos os meios ser superior, ser perfeito. O Homem procura ser um Deus. Se formos folhear os compêndios de Mitologia Grega, veremos muitos casos de tentativas de seres humanos em se tornarem superiores à sua mortalidade. Na própria conceção grega de criação do mundo, vemos Prometeu a dar o “Fogo dos Deuses” ao Homem, um fogo que lhes dá tanto conhecimento como aquele que os deuses têm. A meu ver, o negacionista retratado por Stephen Crane no seu poema sofre de uma espécie de “Síndrome de Ícaro-Sísifo”. Assim como Ícaro alimenta uma curiosidade enorme de conhecer o Sol, o negacionista alimenta uma vontade de conhecer o horizonte. Ambos correm atrás desse conhecimento “ilícito“ e não querem saber das consequências. Assim como Ícaro recebe o aviso de Dédalo (seu pai), o negacionista recebe o aviso do observador. Ambos rejeitam o aviso. Ambos “caem”. Contudo, assim como Sísifo, retrocesso após retrocesso, continua a empurrar a pedra gigante pelo monte acima, o nosso negacionista continua perseguindo o horizonte. Ambos, perante o desespero das suas situações, continuam a acreditar que vão conseguir o seu objetivo. Eles, tal como o Homem no geral, tentam se sobrepor à sua mortalidade. Ainda para mais, acredito que o observador que aborda o negacionista é o próprio Stephen Crane a julgar a ação do homem “louco”, sendo esse julgamento uma ação moralista. A “teimosia” do homem em vencer o seu destino é muito bem contemplada pela Literatura e acredito que não é difícil encontrar nela esta representação da obstinação. Lembro-me neste momento de “Esperando Godot”, peça escrita pelo dramaturgo irlandês Samuel Beckett. Na obra, vemos Estragon e Vladimir, dois homens com aparência de pobres que esperam por Godot, uma pessoa que eles próprios não conhecem (nem sabem o que pretendem dele). Mesmo com as sucessivas quedas “à la Ícaro”, eles mantêm a perseverança que vemos em Sísifo e continuam a esperar por Godot (quase como se ele fosse um Messias que vem fazer uma revelação sobre o curso das vidas do dois), mesmo sabendo que não vai dar em nada e que eles acabarão por morrer e sucumbir a um destino trágico. Se voltarmos à Literatura Norte-Americana, vemos também um caso na obra “A Pérola” (clássico de John Steinbeck), embora este caso de teimosia tenha um propósito mais nobre. Nesta obra, vemos Kino e Juana, dois pais que, contra as suas condições financeiras, tentam curar o seu filho Coyotito. Depois que encontram uma pérola rara na praia, tentam vendê-la para poder pagar o tratamento médico do filho que fora mordido por um escorpião. Apesar das várias rejeições dos especialistas em pérolas que dizem que a pérola é falsa, Kino insiste em vender a pérola e vencer esse destino que o quer entalar com a dívida monetária. Esta teimosia leva à morte da criança durante uma emboscada de ladrões que tentam roubar a pérola que Kino guardava de forma casmurra. Temos também o caso de “Frankenstein”, clássico da Literatura Inglesa escrito por Mary Shelley que conta a história de Victor Frankenstein, um médico que tenta criar uma criatura perfeita contra todos os dogmas da ciência. Acaba por se desiludir e abandonar a criatura que acaba por ser atacada e perseguida na rua. A criatura acaba por se vingar e matar a noiva de Victor e por fazê-lo vaguear durante toda a sua vida. Existem também retratos desta teimosia humana noutras áreas como o Cinema, a Fotografia… mas isso daria uma outra crónica e eu não quero que o caro Leitor fique a achar que a Poesia e as Artes são coisas chatas. Em suma, aconselho a leitura da poesia de Stephen Crane. Como já deixei assente no início do artigo, a poesia de Crane tem uma índole de análise humanista. Stephen Crane analisa a mortalidade do Homem e sua mania da superioridade. Quem gostar de textos com um toque espiritual, tem poemas como “No Céu” ou “Eis, o Túmulo do Homem Maldoso”, onde o autor dá um toque moralístico, algo que não é de surpreender, tendo em conta as raízes metodistas da família de Stephen Crane. Em suma, leiam Stephen Crane e leiam também o livro que o Paul Auster lançou (porque eu também o irei ler). Bibliografia:
- Poema analisado (em inglês): https://www.poetryfoundation.org/poems/50457/i-saw-a-man-pursuing-the-horizon - Mais poemas do autor (em inglês): https://www.poetryfoundation.org/poets/stephen-crane#tab-poems “Com fúria e raiva acuso o demagogo E o seu capitalismo das palavras. Pois é preciso saber que a palavra é sagrada Que de longe muito longe um povo a trouxe E nela pôs a sua alma confiada” - Sophia de Mello Breyner Andresen, in “Com fúria e Raiva” (da obra “O Nome das Coisas”) O que é a Literatura? Para que serve a Literatura? Porquê “Literatura Circular”? Eis algumas velhas (ou atuais) questões que são passíveis de serem postas por qualquer pessoa, seja essa pessoa entendida ou leiga na área da Literatura e das áreas que dela descendem e ramificam. Sendo esta crónica a primeira da rubrica “Literatura Circular”, não pretendo me alongar nesta crónica, tentando não maçar o leitor sobre questões profundas que estão vitaliciamente condenadas a ser questões sem resposta certa.
Tratando também de uma rubrica de crónicas, as mesmas irão tentar fugir ao máximo ao tom erudito (embora eu tenha de citar para dar alguma seriedade àquilo que escrevo) e se cingirão a ser apenas expressão de pensamentos literários da minha parte, pelo que não vejo necessidade de se estar a olhar para a Literatura de uma forma meramente académica (algo que até se revelaria nocivo para a própria compreensão da Literatura). Desde cedo que sou uma pessoa apaixonada por livros. Apesar de ser das poucas pessoas na família que lêem (não fosse a minha área de formação académica a Literatura), a minha paixão por livros foi instigada pela minha família, nomeadamente a minha mãe que me levava à Biblioteca Municipal quando eu era criança para eu passar tardes a (tentar) ler obras de Camilo Castelo Branco. Desde então, ainda que com alguns hiatos, a Literatura e a Ciência estiveram presentes no meu crescimento e formação. Vivendo eu em Portugal, um país pouco dado à Cultura, muitas vezes me deparo com pessoas a me pedirem para lhes definir “literatura” e lhes explicar o sentido e a utilidade da mesma, pedidos esses que, mesmo após anos de estudo de Literatura, não sou capaz de satisfazer. Acredito que muitos investigadores e professores dariam respostas diferentes e vagas no meu lugar. Lembro de, uma vez, uma senhora me dizer que não sabia mesmo o que era Literatura, que nunca tinha ouvido falar de tal coisa, algo que achei absolutamente encantador e que ainda hoje me assalta a consciência. Contudo, tenho algumas ideias para partilhar sobre estas questões. Primeiramente, creio que a Literatura deveria ser vista como uma representação. De quê? De uma realidade, de uma visão, de uma miragem. Acima de tudo, a Literatura, conta-nos uma realidade (apesar de, por vezes, também a poder distorcer). “Como é que Ela nos conta essa realidade?” – poderá o caro Leitor estar a questionar-se. Minha resposta é simples: Ela retrata da mesma forma como o Desenho retrata uma realidade, da mesma forma como a Pintura retrata uma realidade. No entanto, em vez de usar traços e cores, a Literatura usa palavras para o seu retrato, algo que a torna mais “penetrante”, mais “periclitante”. As palavras são definitivamente poderosas, quer queiramos quer não. Consoante o seu modo de emprego, elas mudam estados de espírito, elas mudam ações, elas mudam o curso de uma civilização. A História comprova-nos isso facilmente. A poetisa norte-americana Ella Wheeler Wilcox (1850-1919) dizia no seu poema “A Palavra” que a palavra “era uma jóia, ou uma pedra, ou uma canção, / ou uma chama, ou uma espada de dois gumes”. Não obstante, o poeta brasileiro Drummond de Andrade (1902-1987) dizia também que “certas palavras não podem ser ditas / em qualquer lugar e hora qualquer / (..) devem ser sacralmente pronunciadas / em um tom muito especial…”. Perante estes dois testemunhos, podemos ter a certeza do poder que as palavras têm e da força que a Literatura ganha ao usá-las como seu veículo de expressão. Para além de tudo, apercebo-me de que a Literatura tem uma vantagem sobre outros campos mais concretos como a História ou a Estatística ou outras: o poder da ficção. No seu retrato de uma realidade, a Literatura tem o poder de, através da ficção, embelezar, de deslumbrar, de ornamentar. Poesia é um belo exemplo disso. A constante quebra das normas convencionais da escrita, as várias dimensões empregues nas palavras, os significados, as sensações… são tudo formas de embelezar e deslumbrar quem lê. Caso contrário, o texto literário seria algo seco, sem interesse. A Literatura tem, então, o poder de dar um toque especial no retrato, de embelezar, de dar uma nova visão às várias visões que já existem, algo que, por exemplo, a História não tem. Na História, o campo de visão é limitado. Na Literatura, não é. O retrato histórico é um retrato cru e direto. O retrato literário é um retrato indireto, charmoso e épico. Ann Rigney, investigadora e professora universitária holandesa, fala-nos em “A Dinâmica da Lembrança” que a ficção tem absoluta liberdade para inventar e abrilhantar a sua narração dos factos, criando-se uma história mais épica e memorável e menos insossa do que a história real das coisas. Como dizia o filósofo franco-argelino Albert Camus: “A Ficção é a mentira através da qual contamos a verdade”. No fundo, é essa a vantagem que eu vejo na Literatura: o poder de contar uma boa história que, mesmo que tenha contornos trágicos, consegue ter um final feliz e uma mensagem moral positiva. O poder de contar histórias como o Pedro e o Lobo e o Capuchinho Vermelho que, com todos os contornos menos bons, conseguem deslumbrar uma criança e ensinar-lhe algo de bom no meio de coisas más. Como diz um poema de Manuel Alegre, “há sempre uma candeia / dentro da própria desgraça”. No entanto, por que nem tudo são rosas, a Literatura também pode contar através da ficção boas histórias com finais menos bons (ou trágicos até). São exemplos deste poder obras como “A Pérola” (de John Steinbeck), “Cidade de Vidro” (de Paul Auster), “Carta de uma Desconhecida” (de Stefan Zweig), etc. No fundo, se a Literatura serve realmente para algo, eu diria então que a mesma serve para nos ensinar a Humanidade, para nos lembrar da nossa finitude, da nossa inconstância, da nossa tão perfeita imperfeição. “A Ficção revela a verdade que a realidade obscurece” – já dizia o transcendentalista Ralph Waldo Emerson. Em jeito de conclusão (para a crónica não ser demasiado longa e o Leitor adormecer), o título da rubrica “Literatura Circular” pode ser vista como um trocadilho feito com o termo de Economia Circular (que os economistas e neoliberais me perdoem se eu estiver a usar mal o termo). Assim como a Economia Circular pretende reciclar e implementar uma produção mais sustentável, também a Literatura pode ser circular. Aliás, a Literatura é mais naturalmente circular do que a própria Economia. Quantos livros premiados com grandes prémios literários atualmente não se inspiraram noutros livros mais antigos (sobretudo clássicos) que continham ideias consideradas como “lixo” e em fim de vida? Não é por acaso que, no meio literário, se costuma dizer que não “não há criação sem imitação”. É isso que pretendo com esta rubrica: “circularizar” a Literatura, aproveitar o que está “em fim de vida” e trazer para os leitores, sempre com o objetivo de formar cultivar os leitores com este revivalismo. Há coisas que nos fascinam. Há coisas que nos fazem sonhar. Livros, canções, filmes, objetos, pessoas, paisagens… uma infinidade de coisas nos podem fascinar. Durante estes anos que levo a ler e a tentar perceber a literatura e o poder das palavras e dos autores, não faltaram livros que me fascinassem com histórias e personagens que ganhavam vida perante o meu olhar singelo. Wilde, Eça, Salinger, Steinbeck… Houve uma infinidade de autores que me fizeram as delícias durante todos estes anos. Uma das obras que mais me fascinou nos últimos tempos foi “Esperando Godot”, um clássico do teatro escrito pelo multifacetado escritor irlandês Samuel Beckett. Originalmente escrito na língua francesa, a peça foi lançada em 1952 e conta-nos a história de Estragon e Vladimir, dois companheiros que, num cenário pouco alegre e solarengo, esperam a vinda de um tal Godot, um indivíduo cuja identidade jamais é revelada na peça e de quem os próprios Estragon e Vladimir pretendem algo que os próprios desconhecem. A peça dá-nos um enredo cheio de contínuos diálogos sem sentido e aparentemente sem um fio condutor que possa dar um nexo àquilo que estão a falar (ou, pelo menos, o nexo que o olhar do espetador/leitor mais comum procura). Nesses diálogos, Estragon sempre revela ser a o parceiro mais seco, objetivo e pouco dado a emoções; já Vladimir revela ser mais palrador, subjetivo e muito dado às emoções, sendo dos dois o mais “filósofo”. Outros dois personagens aparecem na história: Pozzo e Lucky. Pozzo é um cego que fala de forma enigmática, enquanto Lucky é um mudo que age de forma tola e segura uma mala e obedece às ordens de Pozzo. Apesar da espera paciente que ambos os “amigos” têm, Godot teima em não chegar. Em vez dele, vem sempre um menino no final de tarde/início de noite que lhes diz que Godot não virá, mas que o mesmo promete comparecer no dia a seguir. Menino sempre é questionado se é o mesmo menino que aparecera no dia anterior para dar o recado, mas o mesmo nega. Perante questões mais profundas, o menino não sabe responder. O menino leva sempre com ele o recado para Godot de que esteve com eles. A criança foge e Vladimir cai para trás. Os dois companheiros sempre acordam no dia seguinte e sempre discutem sobre o facto de não puderem continuar num impasse constante. “Esperando Godot” é uma obra interessante. Confesso que, apesar de não ser um leitor de obras teatrais, esta foi uma obra que puxou por mim e que me fez cismar com o próprio enredo. Não é a melhor obra para se ler quando se está em baixo, devido à filosofia absurdista que move a peça. Contudo, também não é a melhor obra para se ler quando se está muito animado, pois a obra traz-nos um contraste pesado de emoções e o próprio leitor pode não achar piada à obra. É uma obra adequada para períodos em que estamos a meio-termo, isto é, nem alegres nem transtornados. A minha cisma para com a obra prende-se com a representação que, a meu ver, o enredo faz da existência, da crença e da vontade humanas. Para explicar este meu ver, terei de recorrer a duas personagens mitológicas da Antiguidade: Sísifo e Ícaro. Na mitologia grega, Sísifo era conhecido por ter talento e maestria na arte de ser maldoso e foi um dos mais profundos ofensores dos Deuses. Após a sua morte, é condenado a empurrar por toda a eternidade uma pedra gigante pela montanha acima até ao cume. Sempre que atingisse o cume, a pedra rolaria pelo monte abaixo, fazendo com que o condenado tivesse de começar de novo. Na cultura moderna, este castigo simboliza o eterno esforço e persistência que uma pessoa revela perante sucessivos desaires. Por sua vez, Ícaro era conhecido por ser filho de Dédalo, um prestigiado artífice e criador de artimanhas. Após Pasífae (filha de Hélio, Deus do Sol) ter engravidar de um touro, dá à luz um minotauro, uma criatura que é metade homem e metade touro. Como medida preventiva, o minotauro é encurralado num labirinto impossível de desvendar pelo comum mortal que Dédalo criou. Após ajudar Teseu a matar o Minotauro e a escapar do labirinto, Dédalo é aprisionado no labirinto com seu filho Ícaro. Como forma de escaparem, Dédalo cria umas asas de cera para si e para o seu filho para poderem voar. Na fuga pelos ares, Ícaro, curioso, tenta voar mais alto para alcançar o Sol. Com o calor, as asas derretem e Ícaro cai dos céus. Ícaro é representado na era moderna como a prova de que não podemos fazer mais do que aquilo que podemos fazer. Que têm então Sísifo e Ícaro a ver com Godot? Na minha opinião, Godot pode ser representado como um Deus (“Godot” pode ser uma junção do inglês “God” – que significa “Deus” – com “-ot”, uma possível desinência) ou, pelo menos, como um falso Messias. Tal como os messias e os Deuses, Godot faz Vladimir e Estragon cometer o sacrifício de continuar esperando por ele, na esperança de que ele apareça. Eles próprios representam figuras de gente pobre, com praticamente nada, a não ser a esperança. Godot surge como a esperança de que algo possa mudar, fazendo-os esperar dias e adiar o suicídio (algo que, normalmente, faz parte de um crença radical religiosa). É aqui que as personagens mitológicas entram. Sísifo representa a constante persistência dos dois companheiros. Tal como acontece com Sísifo, Estragon e Vladimir empurram a sua pedra gigante pelo monte acima: a infindável espera pela chegada de um homem que não sabem quem é nem sabem o que pretendem dele. Assim como a o esforço de Sísifo é cheia de lamúria e desespero, o esforço dos “heróis” beckettianos da peça também contem ambas as coisas. A passagem que ocorre entre a fuga sem deixar rasto por parte do menino e o acordar dos companheiros no dia seguinte representa aquilo que, no mito grego, é o rolar da pedra pelo monte abaixo que cria um novo ciclo, um novo esforço. Pode ser comparado com aquilo que acontece com Prometeu que, acorrentado no Cáucaso, vê o seu fígado regenerar após ser dilacerado pela águia para que tenha lugar um novo sofrimento. Ícaro, por sua vez, representa a constante curiosidade que ambos têm em desvendar o mistério sobre quem é Godot sobre o que acontecerá quando ele chegar. Esta curiosidade leva-os aguentar estas esperas e a ter sucessivos desaires com a vinda sucessiva do menino. A queda de palco que Vladimir tem ao tentar alcançar o menino representa a tal queda que Ícaro tem. Assim como Ícaro pretende conhecer o Sol, Vladimir quer conhecer o seu próprio Sol: o menino. Meu caro leitor poderá estar a pensar no quão rebuscado pode ser esta peça de Beckett. Acredito que poderá ter razão. Sendo o dramaturgo irlandês o pai ou um dos pais do Teatro do Absurdo, é natural que haja algo de rebuscado nas suas peças. Acredito que “Esperando Godot” é um livro aberto a teorias. O próprio Pozzo e Lucky ainda estão fora do meu entendimento, sendo que continuo tentando formular alguma teoria sobre eles os dois. O rasgo de pensamento que Lucky tem no meio da sua patetice é algo que é um mistério. Pode ser um mistério para muita gente. A peça pode também ter relações com o cinema atual. Por exemplo, a falta de memória sobre o dia anterior com a qual os dois heróis acordam no dia seguinte faz-me lembrar o segundo episódio da segunda temporada da série “Black Mirror”, em que Victoria, a protagonista acorda todos os dias com amnésia num quarto que tem uma televisão ligada e comprimidos espalhados no chão, indicado a hipótese de tentativa de suicídio por envenenamento. No fim de cada dia repleto de fuga a perseguições, após lhe cair o cenário de “reality show” (qual “Truman Show”), regressa sempre inconsciente ao mesmo cenário onde começa cada dia. Recomendo a peça a quem for interessado por obras mais profundas. Lembro-me de ser criança, no fim dos anos 90, e de ir muitas vezes a Braga ao sábado de manhã com a minha mãe. Recordo-me de ir tomar o pequeno-almoço ao café Jolima e de comer um croissant-brioche com queijo e fiambre aquecido. Lembro-me que subíamos a avenida em direção ao Campo da Vinha para enfrentar a multidão da feira, repleta de encontrões, de com licenças abafados, de quanto custa, e do leve que é de qualidade, minha senhora. A minha mãe, sempre com a sua mão na minha, ia usando a outra para remexer e erguer ao sol o tecido em busca da pechincha que vestisse bem. Admito que não era o meu momento preferido do dia, era e ainda sou pouco amigo de multidões. Por cerca de duas horas lá andávamos, eu a apressar o passo e a minha mãe a abrandá-lo de barraca em barraca. Não são muitas as memórias nítidas desses tempos, e talvez as que tenha já se encontrem cortadas e remendadas. Ainda assim, lembro-me que Braga era uma cidade diferente. Braga estava a afinar a voz para o jubileu, queria cantar melhor no novo milénio. Centros comerciais, expansões, requalificação do Theatro Circo e por aí além. Não era de agora que Braga crescia, cidades expandem e minguam principalmente se têm mais de 2000 anos, mas este foi o crescimento que presenciei. Hoje em dia vemos muitos andarilhos pela cidade, normalmente de máquina fotográfica na mão ou a olhar para o telemóvel (há sempre o mais raro que ainda olha para o mapa ou o guia), em busca do monumento ou do melhor sítio para comer bacalhau. Ainda os há, mas mais diluídos nas multidões, os andarilhos nativos, os que fazem das ruas a sua casa, personagens conhecidas dos que conhecem na cidade, que cruzam a avenida, umas vezes pedintes, outras vezes não. Nos tempos em que ia a Braga com a minha mãe, um desses andarilhos era ilustre. Não, não acredito que se eu tivesse conhecido o acharia ilustre, nem acredito que seria a sua intenção mostrar-se ilustre a quem passava por ele. Naquele tempo fazia das ruas de Braga a sua casa o poeta Sebastião Alba. Crescemos a olhar o ser mendigo com olhos de desconfiança. É um drogado, é doente ou não trabalha porque é calaceiro, mas nunca é poeta, mesmo que esta seja uma profissão propícia para a mendigagem. Pergunto-me hoje se foi ele um dos tantos mendigos que naquela altura se aproximavam de mim e da minha mãe a pedir uma moedinha, ou simplesmente a meter conversa quando esperávamos a carreira para Famalicão na paragem em frente da pastelaria S.João. Não sei e nunca vou saber, mas a verdade é que possivelmente se estive frente a frente a Sebastião Alba foi num momento de desconforto, num momento em que a mãe pós a mão em volta do meu ombro e me afastou, virou a cara e disse respeitosamente que não tinha nada, ou estendeu a mão com os trocos. Isto não é um julgamento, é o que era e o que é. A maior parte das pessoas sentem automaticamente um misto de pena e desconforto ou medo e desconforto, seja o que for, sentem desconforto. Sebastião Alba era um poeta para quem o conhecia, mas um homem barbudo e mal-arranjado o para quem não o conhecia. Talvez até o soubessem apenas por Dinis, Dinis Albano, o mendigo. Hoje, apesar de não recordar se alguma vez o vi nas ruas de Braga, gostaria de corrigir o meu desconforto. Gostaria de falar de um poeta moçambicano e nasceu e morreu em Braga e que, nesse tempo entre nascer e morrer, foi jornalista e um dos nomes da 4° fase da literatura moçambicana juntamente com nomes como o Honwana, Rui Knopfli, Rui Nogar, Virgílio de Lemos, Marcelino dos Santos, entre outros. Esteve em Moçambique entre 1949 e 1983 e nesse tempo estudou jornalismo, foi professor, administrador da província de Zambézia e guerrilheiro político apoiante da FRELIMO durante a guerra de libertação de moçambique. É de deixar marcado a importância da literatura para essa guerra e as outras guerras de libertação nas ex-colónias portuguesas. Lutava-se por libertação territorial, mas também por libertação cultural e artística. Intelectuais, escritores, cantores, pintores e todas as formas de expressão eram a arma mais forte e a mais difícil de destruir. Nesse aspeto, Sebastião lutou na guerra, se não o fez de outra forma. Ma verdade, fizera parte e desertara do Contingente Militar Geral, o que lhe custou uma passagem por dois anos de torturas antes de ser condenado a 15 meses de prisão pelo extravio de comida e bens militares. As desilusões relativas à cena política de moçambique no pós-colonialismo fizeram-no voltar em 1983 para Portugal. Passou a viver entre Braga e Torre de Dona Chama, onde viveu antes de partir para Moçambique. A guerra deixa cicatrizes e dois anos de tortura e as desilusões em Moçambique entregaram a Braga um homem nas teias do alcoolismo. O divórcio dos pais e a posterior morte destes também não ajudaram. Por decisão própria passou a viver em Braga, nas ruas. O dinheiro que ia fazendo, como o do prémio literário da dst, em 1996, dava-o às duas filhas, resultado do casamento com uma moçambicana. Sebastião Alba escolheu como casa as ruas de Braga. Encostou-se na sombra das paredes pelas quais continuo a passar, e sentou-se nos bancos, talvez em frente dos Congregados, talvez à sombra do Coreto. Andava com papeis amarrotados nos bolsos e assobiava árias completas, segundo contam. Movia-se “nos bastidores da poesia” e ainda hoje não encontrou a porta para o palco, apesar de ser merecida. Acabou por falecer em 14 de outubro de 2000, morreu atropelado. Tinha no bolso um bilhete dirigido ao seu irmão: “Se um dia encontrarem o teu irmão Dinis, o espólio será fácil de verificar: dois sapatos, a roupa do corpo e alguns papéis que a polícia não entenderá”. Talvez ao ver as duas margens da rodovia tenha decidido que já era tempo de passar para o outro lado, não o julgo, são os riscos de um espírito andarilho. Hoje em dia, como muitos grandes escritores da língua portuguesa, Sebastião Alba continua a estar escondido nos bastidores. Para quem entra em Braga, passa e sai sem ouvir falar de “um dos grandiosos deuses humildes da palavra”. Assim disse José Craveirinha na ocasião da sua morte e assim penso eu. “Lila há muito que sabia que as pessoas dizem mentiras para se defenderem da verdade dos factos.” Li esta frase proferida por Lenú no segundo volume da tetralogia “A Amiga Genial” da Elena Ferrante. Mal fi-lo, um intento de escrever, de dar continuidade àquela constatação nos meus próprios termos, apoderou-se-me. Mas o telemóvel não tinha bateria e nem tinha cadernos na mochila. Estava no comboio, a regressar de casa, cansado e abatido, como sempre a refugiar-me num livro para olvidar a realidade. Pensei em escrever num lenço de papel, sabia que Fernando Pessoa escrevia em guardanapos assim que uma inspiração assaltava-lhe no café. Mas nem sequer uma caneta tinha. Na mochila, apenas trazia bolachas de água e sal, um pacote de leite, roupas, a carteira e máscaras, e o livro da Ferrante. Foda-se, pensei, escrevo assim que chegar a casa. Aborrece-me muito quando creio ter algo de minimamente poético para escrever e vejo-me impossibilitado de fazê-lo, devido à escassez de meios. Não, não acredito em laivos de inspiração divina. Na antiguidade, aos poetas chamavam de vates, espécies de adivinhos ou intérpretes dos desígnios transcendentais. Haviam regras métricas e de estrutura restritas, é verdade, mas eles lá encontravam meios de embelezar o horror do mundo no qual vivemos e pretendemos camuflar com crenças e ilusões. Faziam-no pensando, sentindo também, mas principalmente pensando o que sentiam. Assim também eu o faço, escrevo poemas apenas para dar contornos lânguidos e uma textura aprazível à minha dor imaterializada. Encobrir o horror com pó de arroz, como disse Lenú. É uma forma bastante básica, no entanto apreciada pelos outros, de lidar comigo, de não me entregar a um pranto inquebrantável, de perder o controlo das minhas emoções fortes que ladram com uma tristeza, uma raiva ou uma felicidade eufóricas. Aprendi a escrever poesia assim como aprendi a esconder o marejar angustiante do meu peito e pouca vontade de viver com uma máscara de parcimónia, de calma e quietude, sempre disposto à solidariedade e compreensão. Na verdade, temo muito que a pessoa altamente emocional que sou venha à tona, como se nadasse das profundezas das minhas entranhas sem qualquer esforço. Uma cara séria, de paisagem, diria, e um meio sorriso resolvem a situação – aplico-lhes como uma maquilhagem que sufoca os poros da minha transparência. Gosto de agradar, quando somos reconhecidos e tidos em boa consideração pelas pessoas, sentimo-nos menos maus – a calma e a poesia, símbolos de elevação, são alicerces que me apoiam na resistência contra a entrega à morte. E quando me escapam lágrimas ou risos que parecem procurar aplacar os céus, sinto-me nu, vulnerável, atirado às calhas do ridículo, temendo ser julgado pelo excesso de emoção. Os livros que trago debaixo do braço, por vezes encostados ao peito, são uma armadura que reluz maturidade e, nunca me sentindo propriamente bonito nem aprazível, temo soar imaturo, pedante e não inteligente, alienado e não informado. Associa-se a transparência, o riso e o choro fáceis, a infantilidade, algo de que sempre fugi. Se as pessoas não me reconhecem pela aparência, que seja pela mente; e assim, desde cedo, vivi enquanto criança numa luta interna excruciante para ser um mini-adulto, repudiando a minha própria infantilidade. Depois, com o passar dos anos e a vinda da puberdade, a vontade de agradar e de ser agradado agudizou-se – fui brusco e drástico: troquei as pessoas por livros, definitivamente. Era diariamente humilhado e subjugado por ser efeminado e ninguém se designava a defender-me, todos se escondiam nos seus casulos enquanto assistiam ao espetáculo de sofrimento alheio. Enquanto são os outros que padecem, não somos nós, pensamos. Porque quero eu agradar a essa escumalha, a estes estafermos sem pio nem valores? Que se fodam. Refugiei-me nos livros, nas bibliotecas, aprendi a travar amizades com os mortos; dialogava com as vozes que apenas se faziam audíveis na minha cabeça, aquelas que escapam dos livros, da escrita. Fiz dos escritores, de estranhos distantes e empoeirados, os meus amigos. Isolei-me e, longe da estima de todos, algo de que abdiquei para escapar da maledicência, senti-me mau. Como disse, fazemos questão de agradar as pessoas para que nos tenham em consideração e quando somos tidos em consideração, sentimo-nos menos mal connosco próprios, menos vis devido à dualidade e contrariedade dos nossos próprios sentimentos e pensamentos. Tememos a tempestade que nos assola, que agita as nossas águas com fúria, que nos derruba com uma melancolia crescente e que, tantas vezes, afigura-se através de intentos sombrios, dos quais nos envergonhamos e corremos para os esconder e silenciar. Assim aprendemos a ser mentirosos, a ocultar dos outros aquilo que pretendemos ocultar de nós próprios, da nossa consciência sempre preparada para nos desmoronar e despir. E há algum mal nisto? Não, é assim que vivemos e é assim que sempre viveremos. É com meias-verdades e linearidade que a raça humana sobrevive. É com mentiras, ou se quisermos chamar ilusões, que não nos odiamos. É com o pó de arroz que encobre o terror em que vivo, neste mundo violento e repleto de forças contrárias, que não desapareço. Agora é fácil rastrear a minha afinidade com a Poesia e a Literatura: fujo do barulho das pessoas, encontrando amparo no silêncio dos livros. Sinto-me mau, um pária, um eremita, um anjo caído e rancoroso, e encontro o antídoto para o meu mal-estar novamente nos livros. Um ciclo vicioso. Arrependo-me? Francamente, não. Sorrio muito para quem me aborda apenas para evitar chatices. Sou sucinto nos tratos para despachar conversas. Não mostro contrariedade alguma para que as pessoas nem sequer se aborreçam comigo, assim é mais fácil de me esquecerem e não voltarem até mim. Enfim, resumindo a minha disposição em sociedade: educado e insosso. A mal criadagem e o sal, guardo-os para mim. Não quero chatices. Não quero estar preso a ninguém. Não quero ser dependente da perceção que os outros têm de mim, como se tivesse diariamente de vestir uma pele que eles concebem. Prefiro a minha companhia à dos outros, pois é a única forma de me conhecer, de me observar e percecionar pelos meus próprios olhos, finalmente. Quero definir-me, nos meus próprios termos. Não gosto de estar sempre a fingir que estou bem e que nada me incomoda, só para não desagradar. Digo sempre que estou bem, para que não me voltem a perguntar mais nada. Uso frases curtas para que não me interpretem mal. Já fui muito mal interpretado e comentado, tenho consciência. Não perdoo, apenas finjo ataraxia para com essas pessoas, para que não dediquem nem um segundo do seu tempo a pensar na minha existência. Tenho vontade de me expor, de que gostem de mim, é verdade, mas ao mesmo tempo, estou sempre preparado para me anular, para me apagar, para proteger os meus sentimentos, para não voltar a ser enganado ou aliciado. Sorrio, basta. Nada de palavras: sabemos sempre o que dizemos, mas nunca o que os outros ouvem. Temo que as minhas palavras aticem o lume de algum coração inflamado e que as suas labaredas me queimem. Deixei de confiar. Sou mau por isso? Talvez sim, talvez não. Talvez ninguém confie em ninguém e sejamos todos maus, ao fim e ao cabo. Que se foda – minto. Mais vale fingir que se confia, assim não precisamos de dar explicações a ninguém. Ouve-se e cala-se. Tenho medo das pessoas, da imprevisibilidade da condição humana, e estou sempre preparado para fugir, para me esquivar, tudo por medo e insegurança. Não me quero prolongar nem no tempo nem no espaço. Estou nervoso, ansioso, com muito medo: minto. Digo que estou bem, pareço calmo, disposto a ouvir e compreender. Bem, já passou. Já falou o que tinha a falar a pessoa, posso voltar para a minha vida. Ninguém me fez mal. Relaxa, Alexandre. A pessoa provavelmente gostou de ti, foste simpático e prestativo, não te vai querer fazer mal, não te vão voltar a humilhar e perseguir. Continua, mente que está tudo bem, que não sentes nem pensas em nada, não te manifestes muito, sê básico e nada complexo, não atices a curiosidade. É assim que se sobrevive. E não será assim, lá no fundo, sob o nosso pó de arroz de confiança, de lições de como viver bem a vida, com o fingimento de que já não ligamos aos que os outros pensam de nós depois dos quarenta, que sobrevivemos todos nós? Não, não escrevi isto num lenço por inspiração como o Fernando Pessoa. Tive um caminho todo a pé, até chegar a casa, a pensar em como escrevê-lo no computador. Sentindo, é verdade, mas principalmente pensando o que sinto. Assim como o fazemos na Poesia, com o nosso pó de arroz para encobrir o terror em que vivemos. |
AutorEscreva algo sobre si mesmo. Não precisa ser extravagante, apenas uma visão geral. Histórico
Fevereiro 2022
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