Lembro-me de ser criança, no fim dos anos 90, e de ir muitas vezes a Braga ao sábado de manhã com a minha mãe. Recordo-me de ir tomar o pequeno-almoço ao café Jolima e de comer um croissant-brioche com queijo e fiambre aquecido. Lembro-me que subíamos a avenida em direção ao Campo da Vinha para enfrentar a multidão da feira, repleta de encontrões, de com licenças abafados, de quanto custa, e do leve que é de qualidade, minha senhora. A minha mãe, sempre com a sua mão na minha, ia usando a outra para remexer e erguer ao sol o tecido em busca da pechincha que vestisse bem. Admito que não era o meu momento preferido do dia, era e ainda sou pouco amigo de multidões. Por cerca de duas horas lá andávamos, eu a apressar o passo e a minha mãe a abrandá-lo de barraca em barraca. Não são muitas as memórias nítidas desses tempos, e talvez as que tenha já se encontrem cortadas e remendadas. Ainda assim, lembro-me que Braga era uma cidade diferente. Braga estava a afinar a voz para o jubileu, queria cantar melhor no novo milénio. Centros comerciais, expansões, requalificação do Theatro Circo e por aí além. Não era de agora que Braga crescia, cidades expandem e minguam principalmente se têm mais de 2000 anos, mas este foi o crescimento que presenciei. Hoje em dia vemos muitos andarilhos pela cidade, normalmente de máquina fotográfica na mão ou a olhar para o telemóvel (há sempre o mais raro que ainda olha para o mapa ou o guia), em busca do monumento ou do melhor sítio para comer bacalhau. Ainda os há, mas mais diluídos nas multidões, os andarilhos nativos, os que fazem das ruas a sua casa, personagens conhecidas dos que conhecem na cidade, que cruzam a avenida, umas vezes pedintes, outras vezes não. Nos tempos em que ia a Braga com a minha mãe, um desses andarilhos era ilustre. Não, não acredito que se eu tivesse conhecido o acharia ilustre, nem acredito que seria a sua intenção mostrar-se ilustre a quem passava por ele. Naquele tempo fazia das ruas de Braga a sua casa o poeta Sebastião Alba. Crescemos a olhar o ser mendigo com olhos de desconfiança. É um drogado, é doente ou não trabalha porque é calaceiro, mas nunca é poeta, mesmo que esta seja uma profissão propícia para a mendigagem. Pergunto-me hoje se foi ele um dos tantos mendigos que naquela altura se aproximavam de mim e da minha mãe a pedir uma moedinha, ou simplesmente a meter conversa quando esperávamos a carreira para Famalicão na paragem em frente da pastelaria S.João. Não sei e nunca vou saber, mas a verdade é que possivelmente se estive frente a frente a Sebastião Alba foi num momento de desconforto, num momento em que a mãe pós a mão em volta do meu ombro e me afastou, virou a cara e disse respeitosamente que não tinha nada, ou estendeu a mão com os trocos. Isto não é um julgamento, é o que era e o que é. A maior parte das pessoas sentem automaticamente um misto de pena e desconforto ou medo e desconforto, seja o que for, sentem desconforto. Sebastião Alba era um poeta para quem o conhecia, mas um homem barbudo e mal-arranjado o para quem não o conhecia. Talvez até o soubessem apenas por Dinis, Dinis Albano, o mendigo. Hoje, apesar de não recordar se alguma vez o vi nas ruas de Braga, gostaria de corrigir o meu desconforto. Gostaria de falar de um poeta moçambicano e nasceu e morreu em Braga e que, nesse tempo entre nascer e morrer, foi jornalista e um dos nomes da 4° fase da literatura moçambicana juntamente com nomes como o Honwana, Rui Knopfli, Rui Nogar, Virgílio de Lemos, Marcelino dos Santos, entre outros. Esteve em Moçambique entre 1949 e 1983 e nesse tempo estudou jornalismo, foi professor, administrador da província de Zambézia e guerrilheiro político apoiante da FRELIMO durante a guerra de libertação de moçambique. É de deixar marcado a importância da literatura para essa guerra e as outras guerras de libertação nas ex-colónias portuguesas. Lutava-se por libertação territorial, mas também por libertação cultural e artística. Intelectuais, escritores, cantores, pintores e todas as formas de expressão eram a arma mais forte e a mais difícil de destruir. Nesse aspeto, Sebastião lutou na guerra, se não o fez de outra forma. Ma verdade, fizera parte e desertara do Contingente Militar Geral, o que lhe custou uma passagem por dois anos de torturas antes de ser condenado a 15 meses de prisão pelo extravio de comida e bens militares. As desilusões relativas à cena política de moçambique no pós-colonialismo fizeram-no voltar em 1983 para Portugal. Passou a viver entre Braga e Torre de Dona Chama, onde viveu antes de partir para Moçambique. A guerra deixa cicatrizes e dois anos de tortura e as desilusões em Moçambique entregaram a Braga um homem nas teias do alcoolismo. O divórcio dos pais e a posterior morte destes também não ajudaram. Por decisão própria passou a viver em Braga, nas ruas. O dinheiro que ia fazendo, como o do prémio literário da dst, em 1996, dava-o às duas filhas, resultado do casamento com uma moçambicana. Sebastião Alba escolheu como casa as ruas de Braga. Encostou-se na sombra das paredes pelas quais continuo a passar, e sentou-se nos bancos, talvez em frente dos Congregados, talvez à sombra do Coreto. Andava com papeis amarrotados nos bolsos e assobiava árias completas, segundo contam. Movia-se “nos bastidores da poesia” e ainda hoje não encontrou a porta para o palco, apesar de ser merecida. Acabou por falecer em 14 de outubro de 2000, morreu atropelado. Tinha no bolso um bilhete dirigido ao seu irmão: “Se um dia encontrarem o teu irmão Dinis, o espólio será fácil de verificar: dois sapatos, a roupa do corpo e alguns papéis que a polícia não entenderá”. Talvez ao ver as duas margens da rodovia tenha decidido que já era tempo de passar para o outro lado, não o julgo, são os riscos de um espírito andarilho. Hoje em dia, como muitos grandes escritores da língua portuguesa, Sebastião Alba continua a estar escondido nos bastidores. Para quem entra em Braga, passa e sai sem ouvir falar de “um dos grandiosos deuses humildes da palavra”. Assim disse José Craveirinha na ocasião da sua morte e assim penso eu.
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“Lila há muito que sabia que as pessoas dizem mentiras para se defenderem da verdade dos factos.” Li esta frase proferida por Lenú no segundo volume da tetralogia “A Amiga Genial” da Elena Ferrante. Mal fi-lo, um intento de escrever, de dar continuidade àquela constatação nos meus próprios termos, apoderou-se-me. Mas o telemóvel não tinha bateria e nem tinha cadernos na mochila. Estava no comboio, a regressar de casa, cansado e abatido, como sempre a refugiar-me num livro para olvidar a realidade. Pensei em escrever num lenço de papel, sabia que Fernando Pessoa escrevia em guardanapos assim que uma inspiração assaltava-lhe no café. Mas nem sequer uma caneta tinha. Na mochila, apenas trazia bolachas de água e sal, um pacote de leite, roupas, a carteira e máscaras, e o livro da Ferrante. Foda-se, pensei, escrevo assim que chegar a casa. Aborrece-me muito quando creio ter algo de minimamente poético para escrever e vejo-me impossibilitado de fazê-lo, devido à escassez de meios. Não, não acredito em laivos de inspiração divina. Na antiguidade, aos poetas chamavam de vates, espécies de adivinhos ou intérpretes dos desígnios transcendentais. Haviam regras métricas e de estrutura restritas, é verdade, mas eles lá encontravam meios de embelezar o horror do mundo no qual vivemos e pretendemos camuflar com crenças e ilusões. Faziam-no pensando, sentindo também, mas principalmente pensando o que sentiam. Assim também eu o faço, escrevo poemas apenas para dar contornos lânguidos e uma textura aprazível à minha dor imaterializada. Encobrir o horror com pó de arroz, como disse Lenú. É uma forma bastante básica, no entanto apreciada pelos outros, de lidar comigo, de não me entregar a um pranto inquebrantável, de perder o controlo das minhas emoções fortes que ladram com uma tristeza, uma raiva ou uma felicidade eufóricas. Aprendi a escrever poesia assim como aprendi a esconder o marejar angustiante do meu peito e pouca vontade de viver com uma máscara de parcimónia, de calma e quietude, sempre disposto à solidariedade e compreensão. Na verdade, temo muito que a pessoa altamente emocional que sou venha à tona, como se nadasse das profundezas das minhas entranhas sem qualquer esforço. Uma cara séria, de paisagem, diria, e um meio sorriso resolvem a situação – aplico-lhes como uma maquilhagem que sufoca os poros da minha transparência. Gosto de agradar, quando somos reconhecidos e tidos em boa consideração pelas pessoas, sentimo-nos menos maus – a calma e a poesia, símbolos de elevação, são alicerces que me apoiam na resistência contra a entrega à morte. E quando me escapam lágrimas ou risos que parecem procurar aplacar os céus, sinto-me nu, vulnerável, atirado às calhas do ridículo, temendo ser julgado pelo excesso de emoção. Os livros que trago debaixo do braço, por vezes encostados ao peito, são uma armadura que reluz maturidade e, nunca me sentindo propriamente bonito nem aprazível, temo soar imaturo, pedante e não inteligente, alienado e não informado. Associa-se a transparência, o riso e o choro fáceis, a infantilidade, algo de que sempre fugi. Se as pessoas não me reconhecem pela aparência, que seja pela mente; e assim, desde cedo, vivi enquanto criança numa luta interna excruciante para ser um mini-adulto, repudiando a minha própria infantilidade. Depois, com o passar dos anos e a vinda da puberdade, a vontade de agradar e de ser agradado agudizou-se – fui brusco e drástico: troquei as pessoas por livros, definitivamente. Era diariamente humilhado e subjugado por ser efeminado e ninguém se designava a defender-me, todos se escondiam nos seus casulos enquanto assistiam ao espetáculo de sofrimento alheio. Enquanto são os outros que padecem, não somos nós, pensamos. Porque quero eu agradar a essa escumalha, a estes estafermos sem pio nem valores? Que se fodam. Refugiei-me nos livros, nas bibliotecas, aprendi a travar amizades com os mortos; dialogava com as vozes que apenas se faziam audíveis na minha cabeça, aquelas que escapam dos livros, da escrita. Fiz dos escritores, de estranhos distantes e empoeirados, os meus amigos. Isolei-me e, longe da estima de todos, algo de que abdiquei para escapar da maledicência, senti-me mau. Como disse, fazemos questão de agradar as pessoas para que nos tenham em consideração e quando somos tidos em consideração, sentimo-nos menos mal connosco próprios, menos vis devido à dualidade e contrariedade dos nossos próprios sentimentos e pensamentos. Tememos a tempestade que nos assola, que agita as nossas águas com fúria, que nos derruba com uma melancolia crescente e que, tantas vezes, afigura-se através de intentos sombrios, dos quais nos envergonhamos e corremos para os esconder e silenciar. Assim aprendemos a ser mentirosos, a ocultar dos outros aquilo que pretendemos ocultar de nós próprios, da nossa consciência sempre preparada para nos desmoronar e despir. E há algum mal nisto? Não, é assim que vivemos e é assim que sempre viveremos. É com meias-verdades e linearidade que a raça humana sobrevive. É com mentiras, ou se quisermos chamar ilusões, que não nos odiamos. É com o pó de arroz que encobre o terror em que vivo, neste mundo violento e repleto de forças contrárias, que não desapareço. Agora é fácil rastrear a minha afinidade com a Poesia e a Literatura: fujo do barulho das pessoas, encontrando amparo no silêncio dos livros. Sinto-me mau, um pária, um eremita, um anjo caído e rancoroso, e encontro o antídoto para o meu mal-estar novamente nos livros. Um ciclo vicioso. Arrependo-me? Francamente, não. Sorrio muito para quem me aborda apenas para evitar chatices. Sou sucinto nos tratos para despachar conversas. Não mostro contrariedade alguma para que as pessoas nem sequer se aborreçam comigo, assim é mais fácil de me esquecerem e não voltarem até mim. Enfim, resumindo a minha disposição em sociedade: educado e insosso. A mal criadagem e o sal, guardo-os para mim. Não quero chatices. Não quero estar preso a ninguém. Não quero ser dependente da perceção que os outros têm de mim, como se tivesse diariamente de vestir uma pele que eles concebem. Prefiro a minha companhia à dos outros, pois é a única forma de me conhecer, de me observar e percecionar pelos meus próprios olhos, finalmente. Quero definir-me, nos meus próprios termos. Não gosto de estar sempre a fingir que estou bem e que nada me incomoda, só para não desagradar. Digo sempre que estou bem, para que não me voltem a perguntar mais nada. Uso frases curtas para que não me interpretem mal. Já fui muito mal interpretado e comentado, tenho consciência. Não perdoo, apenas finjo ataraxia para com essas pessoas, para que não dediquem nem um segundo do seu tempo a pensar na minha existência. Tenho vontade de me expor, de que gostem de mim, é verdade, mas ao mesmo tempo, estou sempre preparado para me anular, para me apagar, para proteger os meus sentimentos, para não voltar a ser enganado ou aliciado. Sorrio, basta. Nada de palavras: sabemos sempre o que dizemos, mas nunca o que os outros ouvem. Temo que as minhas palavras aticem o lume de algum coração inflamado e que as suas labaredas me queimem. Deixei de confiar. Sou mau por isso? Talvez sim, talvez não. Talvez ninguém confie em ninguém e sejamos todos maus, ao fim e ao cabo. Que se foda – minto. Mais vale fingir que se confia, assim não precisamos de dar explicações a ninguém. Ouve-se e cala-se. Tenho medo das pessoas, da imprevisibilidade da condição humana, e estou sempre preparado para fugir, para me esquivar, tudo por medo e insegurança. Não me quero prolongar nem no tempo nem no espaço. Estou nervoso, ansioso, com muito medo: minto. Digo que estou bem, pareço calmo, disposto a ouvir e compreender. Bem, já passou. Já falou o que tinha a falar a pessoa, posso voltar para a minha vida. Ninguém me fez mal. Relaxa, Alexandre. A pessoa provavelmente gostou de ti, foste simpático e prestativo, não te vai querer fazer mal, não te vão voltar a humilhar e perseguir. Continua, mente que está tudo bem, que não sentes nem pensas em nada, não te manifestes muito, sê básico e nada complexo, não atices a curiosidade. É assim que se sobrevive. E não será assim, lá no fundo, sob o nosso pó de arroz de confiança, de lições de como viver bem a vida, com o fingimento de que já não ligamos aos que os outros pensam de nós depois dos quarenta, que sobrevivemos todos nós? Não, não escrevi isto num lenço por inspiração como o Fernando Pessoa. Tive um caminho todo a pé, até chegar a casa, a pensar em como escrevê-lo no computador. Sentindo, é verdade, mas principalmente pensando o que sinto. Assim como o fazemos na Poesia, com o nosso pó de arroz para encobrir o terror em que vivemos. |
AutorEscreva algo sobre si mesmo. Não precisa ser extravagante, apenas uma visão geral. Histórico
Fevereiro 2022
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