Nascido em Vila Nova de Famalicão em 1997, Raphael de Sousa é poeta e aspirante a professor universitário de Literatura e a romancista. É licenciado em Línguas e Literaturas Europeias pela Universidade do Minho e frequenta o mestrado em Língua, Literatura e Cultura Inglesas na mesma universidade. Desde a infância que os livros fazem parte da sua vida e, após uma vontade inexplicável de imitar Camões começou a escrever poesia aos 15 anos. Foi colaborador do Jornal Académico da Rádio Universitária do Minho. Em 2016, em conjunto com o seu amigo e companheiro Pedro Maia, funda o “Sarcasmos Irónicos”, uma plataforma de criação literária que tenta dar palco a novos escritores e ajudar os mesmos a sair do anonimato. É o segundo convidado da rubrica “Entrevistas Interartísticas” e o primeiro membro do “Sarcasmos Irónicos” a ser incluído neste ciclo de entrevistas, também numa tentativa de dar a conhecer aos leitores os membros que estão por detrás destas entrevistas e da própria revista. Tem a amabilidade de responder a 30 perguntas que inquietam qualquer escritor e artista e que, ao longo desta rubrica, vão ser colocadas a vários escritores e artistas. Agradecemos a disponibilidade e a amabilidade do nosso entrevistado em responder a tais perguntas inquietantes. Sarcasmos Irónicos: Quando é que ganhou interesse pela literatura? Raphael de Souza: Os livros sempre estiveram presentes na minha vida desde miúdo. Lembro-me de ler Camilo Castelo Branco com 8 anos, embora não percebesse nada do que ele dizia, mas gostava de lidar com as palavras. Minha mãe sempre me encorajou a ler e a minha tia paterna oferecia-me muitas enciclopédias de história e ciência. Meu avô paterno, embora não fosse escritor nem tivesse relacionamento algum com literatura, era um bom “storyteller” no verdadeiro sentido da palavra e era um engenheiro que lia muito sobre ciências e política e natureza. A minha verdadeira paixão pela literatura e escrita surgiu aos 15 anos através de Camões e foi quando comecei a escrever poesia. SI: Quais são as suas inspirações quando escreve? RdS: Em Portugal, as maiores inspirações serão sempre Fernando Pessoa, Eça de Queirós, Manuel Alegre, etc. A nível estrangeiro, as influências são infinitas. Whitman, Paul Auster, Rimbaud, Keats, Yeats, Robert Frost, Salinger, Borges, etc. SI: Costuma planear um livro? RdS: Não planeio livros, embora goste de registar os passos que dou nos capítulos para ver por onde poderei entrar. Planear um livro é torná-lo formatado, embora o ignorar a coerência e o acompanhamento do fio à meada não funcione. O meio termo também é complicado. Escrever um livro é um mistério. Por isso é que ainda não consegui publicar algum. SI: Quando tem que/querem escrever, mas não tem ideias, o que fazes? RdS: Nada. Fico rabugento e fico a escamotear para com os Deuses até que me venham as ideias. SI: Na sua opinião, qual o papel da literatura na formação das pessoas? RdS: Fundamental. A Literatura faz as pessoas olhar para o mundo para além da sua mecânica. As pessoas tendem a olhar para o mundo através da história e dos factos crus e puros como se fossem Thomas Gradgrind (do “Hard Times”, de Charles Dickens), mas a visão precisa de ficção, de um ornamento que torne as coisas mais bonitas e mais memoráveis. O mundo não precisa de tanto realismo, de tanto 3D. SI: Como devemos despertar o gosto pela leitura nas pessoas? RdS: Dando liberdade à pessoas desde cedo para lerem os livros da sua própria forma. Apesar de um esforço de décadas para contrariar o abandono da leitura, acho que a grande culpa pelo “desapetite” pela leitura ainda cai sobre as escolas. Dissecar as obras nas aulas e enfiar interpretações pela goela abaixo não faz os alunos perceber a literatura e, acima de tudo, senti-la. A ideia recente de se retirar clássicos dos planos curriculares e substituí-los por obras mais “fáceis” não resolve nada e constitui um assalto à essência da Literatura. A solução é dar mais liberdade interpretativa aos alunos e fazê-los desenvolver a imaginação e a consciência. Também há que lhes desenvolver a aptidão para a criação literária. SI: Que tipo de obras não devem faltar numa biblioteca? RdS: Considero que uma boa biblioteca deve abranger todas as áreas de conhecimento. Na área da literatura, há ainda um pouco de deficiência na oferta. Podia haver mais acesso a literatura europeia, americana, asiática, africana, etc. Filosofia também é uma área um pouco desinvestida. As áreas dentro das Letras são, de um modo geral, mais desinvestidas nas bibliotecas, pois Portugal tornou-se num país de médicos, economistas, políticos e engenheiros. Agora, todos querem saber de tecnologia, todos querem saber de política, todos querem saber de economia, todos querem tratar maleitas, mas são poucos os que querem olhar para as maleitas da alma e da sociedade e essas maleitas estão para além da tecnologia e das leis e das convenções sociais. SI: Quais os seus critérios na escolha de um livro para ler? RdS: Capa boa, um bom título, não ser um livro muito grande. Livros que ultrapassem as 300 páginas já é um pouco desmotivador para ler, pois indica que poderá haver “palha” no enredo. O autor e o seu “currículo” literário também têm a sua importância, embora não seja determinante. É óbvio que um autor canônico será sempre mais atrativo, quer queiramos ou não. SI: Qual é a para si a importância de uma boa capa? Acha que uma bela capa atrai leitores ou acha que estraga a obra? RdS: Uma boa capa tem muita importância para tornar um livro atrativo. As pessoas comem muito com os olhos e eu também me incluo nessa categoria. Contudo, a capa não deve demasiado sensacionalista e bonitinha, porque dá a sensação de que o livro não tem muito para oferecer. Por outro lado, a capa também não deve ser muito artística e arrojada, porque acaba dando ao livro um pedantismo excessivo. Não digo que o pedantismo não seja bom em certa medida na Literatura, mas nunca deve ultrapassar um certo nível. Caso contrário, vira uma mera expressão de ego. SI: Gosta de capas mais bonitas e “românticas"/”impressionistas" ou de capas mais gráficas e arrojadas? (Exemplos: capas de Lesley Pearse vs capas de Murakami) RdS: Gosto de capas bonitas, mas não gosto de capas românticas. As capas bonitas atraem a atenção das pessoas, mas as capas românticas tapam aquilo que as editoras não querem que o consumidor final veja a olho nu. As capas românticas acabam sendo um golpe de marketing editorial. Também gosto bastante das capas arrojadas e gráficas, pois acabam sendo um convite ao pensamento e a uma viagem para além do realismo do mundo. Nunca li nada do Murakami, mas gosto bastante das capas. Acho que são capas desafiantes. SI: Quais são as características de um bom texto? RdS: Um bom texto deve ser fluente, sem erros ortográficos, sem erros de coesão nem de pontuação. É fundamental para o leitor entender o raciocínio do ficcionista. Um bom texto pode também ter um estilo cinematográfico em que, a cada capítulo ou meio capítulo, o escritor é transportado repentinamente de um cenário para outro. Acho que é desafiante para a imaginação convencional do leitor que está habituado a coisas mais elementares. Há mestres no estilo de deambulação entre cenários. James Joyce é um deles. SI: Prefere uma escrita mais psicológica (estilo fluxo de consciência) ou uma escrita mais quotidiana? RdS: Ambas são bons modos de escrita, desde que não sejam exageradas. O estilo psicológico é bom para olharmos para a pessoa retratada de uma forma completa e não apenas da perspetiva da moral e das suas ações. James Joyce faz isso com Stephen Dedalus (o protagonista no “Retrato do Artista enquanto Jovem”) ao retratar um jovem miúdo com ideias moralistas e muito católico que, ao longo do enredo, vai crescendo e vai se desmoronando moralmente enquanto “arde” psicologicamente com a ideia de ser castigado por um Deus cruel e severo que não suporta o erro e o pecado. Tolstoi faz também um ótimo trabalho com Ivan Ilitch ao retratar a forma como a mente de um conceituado juiz lida com a doença e com a forma como a medalha que o mesmo enverga dizendo “Respice Finem” faz jus ao existencialismo inerente. O estilo quotidiano de escrita também é bom, sendo que dá algum senso de realidade a uma ficção. Hemingway tem bons trabalhos nesse estilo como são os casos de “The Sun Also Rises”, “The Garden of Eden” e “The Old Man and the Sea”. São livros em que a escrita é simples e sem manias e ornamentos e tem uma dose de realidade. SI: Qual a relação a entre o autor e a obra? Deve haver um distanciamento ou uma comunhão entre ambos os “polos”? RdS: Tem muito a ver com o que o autor pretende da obra e também com o lado introvertido ou extrovertido do próprio. Há autores como Robert Browning e Peter Handke que se distanciam emocionalmente da obra e do protagonista/eu-lírico. Há outros que se parecem agarrar muito aos personagens. Pessoalmente, defendo um meio termo aqui. Creio numa relação muito próxima entre o autor e o protagonista, mas também creio que não seja demasiado próxima para que o ego do autor não se apodere da voz do personagem e dê à escrita um tom arrogante e chato. SI: Qual a relação entre o autor-pessoa e o autor-entidade ficcional? Podem ser a mesma pessoa ou precisam de personalidades diferentes? RdS: Depende do contexto, mas, num contexto normal que não se deixe pautar por restrições e constrangimentos, torna-se lógico que o autor-pessoa e o autor-entidade ficcional sejam a mesma pessoa, pois o autor espelha na voz do protagonista as suas preocupações e os seus anseios e pensamentos. Geralmente, é disso que é feita a voz à qual costumamos chamar de “voz poética”. Contudo, o autor-pessoa pode também distanciar-se do autor-entidade ficcional. Por isso é que temos os pseudónimos e os alter-egos. Por isso é que temos autores como o Fernando Pessoa que se reparte em várias heterónimos com várias personalidades diferentes como se fosse uma matrioska. É também lógico que isso aconteça, sobretudo quando queremos expressar algo sem sermos alvo de retaliações, nomeadamente em situações de opressão. SI: Como define o seu estilo de escrita? RdS: Não tenho estilo definido e ainda estou em luta para definir um estilo meu. Sou um escritor eclético que gosta de vários estilos. Aquilo que tento é não ser muito sentimental para que o texto que escrevo não se torne fútil e fique com pouco a oferecer. Tento também não me distanciar muito, porque não quero que a voz do sujeito poético seja fria e sem compaixão. Se, algum dia, conseguir um estilo meu, esse será um estilo mais “crossover”, ou seja, um estilo convergente que possui vários modos vindos de vários géneros. SI: Que pensa do tão polémico Novo Acordo Ortográfico? RdS: Eis uma pergunta que mexe com sentimentos de pessoas. Vejo uma certa tendência para a generalização e para a ideia de que Portugal se rebaixou na sua essência. Enquanto escritor que é licenciado na área das Línguas, devo dizer que o Novo Acordo Ortográfico tem muito sentido no que toca à escrita, porque vem fazer com que as pessoas escrevam as palavras da mesma forma como as pronunciam. Quando o Novo Acordo entrou em vigor, eu ainda era aluno e estava a entrar para o 9ºano e, até aí, sempre me tinha questionado sobre o porquê de, por exemplo, eu ter de escrever as palavras “baptismo” e “acção” quando, na fala, eu as pronunciar como “batismo” e “ação”. Não fazia sentido para mim e acredito que não fazia sentido para muita gente. Foi um conjunto de incoerências linguísticas que o Novo Acordo Ortográfico veio resolver para bem. Como é óbvio, houve correções desnecessárias que o Novo Acordo veio fazer, como foi o caso de certas supressões de acentos que vieram causar complicação e obrigar os leitores a ler duas ou três vezes a mesma frase para entender a palavra. É o exemplo do “para” e do “pára”. Também há o caso da supressão do hífen em certas expressões que veio alterar o universo da aglutinação e da justaposição de palavras. Contudo, acho que o Novo Acordo Ortográfico veio trazer coisas boas à língua portuguesa e fazer certas correções necessárias e é algo normal, porque qualquer língua em qualquer parte do mundo está em constante evolução. Para além disso, as variantes da língua portuguesa continuarão a manter a sua essência porque há uma riqueza de vocabulário inerente às várias variantes que jamais poderá ser suprimida. SI: Como é, na sua opinião, ser escritor em Portugal? RdS: Ser escritor em Portugal é complicado. Como disse numa pergunta acima, estamos num país de juízes, engenheiros, médicos e economistas. As Letras estão desaproveitadas em Portugal, embora comece a ver um esforço crescente para revalorizar as letras. No século XX, tínhamos em Portugal que, apesar de 48 anos de ditadura e outros 26 anos de ressaca e de reconstrução de um país saído da opressão, tinha uma força artística e literária ainda significativa. Passamos desse país paradoxalmente literário para um país que, em pleno século XXI, está perdido culturalmente. Nos dias de hoje, não se pensa muito em Literatura, embora esteja a começar a mudar. É mais fácil mandar o filho estudar Medicina e Engenharia e Direito, porque dá dinheiro e atrai bons partidos para casamento. Não se pensa em mandar o filho estudar Literatura ou Filosofia ou Antropologia. Foge-se disso. Quando um jovem diz que quer ser escritor ou músico, ouve-se muito rapidamente um “Para quê? Serve para alguma coisa? Vai dar de comer aos teus filhos?”. As pessoas pensam no que é fácil e no que dá dinheiro. As pessoas não pensam muito em cultura. O que é o pensamento livre à beira de um cabrito na mesa, uma casa com jardim e um BMW na garagem? Não é nada. É muito difícil viver-se da Literatura e da Cultura em Portugal, a não ser que sejas um cânon contemporâneo tipo um Saramago ou um Lobo Antunes. E mesmo assim… É Portugal. Olhamos para países mais culturalizados e é diferente. Nos Estados Unidos, é muito recorrente ouvir a expressão “escritor profissional” e esta expressão vem acompanhada pela expressão “agente literário”. Há uma indústria lá fora que permite aos escritores viverem da sua arte. Aqui em Portugal, a definição de “Literatura” é “afagar as mágoas num papel ao fim do dia, depois de sair de um turno de 8 horas de trabalho fatigante”. Os nossos dicionários andam enganados nas definições. SI: Que acha de pessoas famosas escreverem livros ou pagarem a ghost-writers para o fazer? Acha que isso mata a literatura e os “verdadeiros" escritores? RdS: Eis outra questão que mexe com os sentimentos das pessoas. Há muitas opiniões favoráveis e outras não muito favoráveis e eu não quero ser radical nem maldoso com quem o faz. Acho que a Literatura é Literatura e a Literatura é arte. Como tal, deve ser feita por quem a entende. Muitas pessoas falam no direito que as pessoas têm de escrever livros e contar as suas histórias e, no que toca a isso, não nego. Não deixa de “storytelling” e é disso que a Literatura é geralmente feita, seja esse “storytelling” ficcional ou não-ficcional. Contudo, os livros escritos pelos famosos que saem das editoras para o mercado livreiro são uma bomba de marketing editorial e de autopromoção por parte do autor, sendo que a editora ganha mais dinheiro e o autor ganha mais seguidores nas redes sociais. Isto, no fundo, não mata a literatura, mas prejudica os “verdadeiros” escritores, os artistas que entendem a literatura e ganham pouco ou nada com a sua arte (alguns nem conseguem publicar, porque publicar um livro fica caro) enquanto vêm autobiografias de famosos faturarem às centenas e aos milhares de euros. Se isto fosse um famoso ou dois ou três a publicarem um livro, não havia grande problema, mas imagine-se todo o famoso e mais algum a escreverem autobiografia. Os livros dos “verdadeiros” autores ficam para trás nas vendas e, por vezes, esquecidos. Já a história dos ghost-writers não é nova. Sinceramente, pagar a alguém para escrever um livro por mim e publicá-lo como tendo sido escrito por mim e virar o marketing que vira não só é desleal para com a Literatura, mas também desleal para com as pessoas que compram esses livros. Contudo, não quero ser radical nisto, porque cada um tem o direito de escrever e publicar livros que quiser. Talvez nem seja um problema nos países mais desenvolvidos, mas, aqui em Portugal, é um desequilíbrio que não devia acontecer. SI: Que relação deve existir entre o cinema e a literatura? RdS: Deve existir uma relação próxima entre ambos os campos, até porque muitos livros já estão escritos num estilo mais cinematográficos e ficam mais fáceis para serem adaptados para cinema. Por exemplo, livros do Joyce ou do Hemingway são ótimos para adaptar no cinema. SI: O que pensa dos remakes e das adaptações? Devem-se manter fiéis ao original ou devem dar um caminho diferente ao enredo? RdS: Há muitos puristas que defendem que as adaptações e remakes devem se manter fiéis à ideia original dos escritores nos livros. Há uma certa lógica. Pessoalmente, defendo que, tanto na Literatura e no Cinema, há uma liberdade para criar perspetivas e originar uma metamorfose das ideias. Acredito que há sempre uma perspetiva diferente a dar sobre um livro e o cinema pode mostrar e responder a certas perguntas como “E se o protagonista do livro não tivesse enlouquecido?”, “E se o adjuvante do protagonista não tivesse morrido?”, etc. Contudo, defendo que quem está a adaptar a obra para cinema tenha a atenção à essência da obra e que todas as alterações de perspetiva que sejam feitas não comprometam a ideia basilar da história. SI: Quais as relações possíveis entre a música e a literatura? RdS: A literatura está ligada com a música (sobretudo no que toca à poesia), porque a música acaba dando movimento à literatura. Imagine um carro. Podes ver que o carro é um Mercedes, mas andar com ele é sempre uma experiência diferente. É essa a relação que vejo entre a Literatura e a Música. Podes ler um poema e ver que ele é bonito, mas uma música e uma voz a cantar os versos dá uma experiência diferente. A Literatura e a Música têm uma relação antiga. Os gregos faziam isso na antiguidade. Cantavam poemas ao som de uma lira. Na Irlanda pré-Cristã, fazia-se isso. Cá em Portugal, a poesia e a música relacionam-se através do fado. E não só. Durante décadas, o Festival da Canção tinha músicas a concurso com letras escritas por poetas e escritores. Foi algo que se perdeu com o tempo . Devíamos recuperar isso, sobretudo para divulgar novos poetas e escritores. SI: O que te fascina na poesia? RdS: Fascina-me o lado não-convencional. Rimar ou não rimar, não teres de rescrever até ao fim da linha para passares para a linha seguinte, não teres de terminar um verso com um ponto final ou uma vírgula ou com pontuação… Depois, tens os jogos de palavras, de pensamentos, de ideias. Podes jogar com a mente de quem está a ler, podes provocar-lhe uma lágrima, um riso, euforia, disforia, tristeza… A poesia tem um poder profundo difícil de explicar. SI: Já pensaste alguma vez em escrever em outro estilo? Se sim, qual? RdS: Já pensei e tento. Tento escrever romances, embora nunca consiga. Também tento escrever contos. É muito desafiante contar histórias e prender a atenção de quem a lê. O tom cinematográfico, a mente do protagonista… No conto e no romance, podes levar o leitor até onde quiseres, enquanto, na poesia, ainda não tens essa liberdade total. Tens é de conseguir manter uma coesão, que é o mais complicado no romance e no conto. Também já pensei em escrever para teatro e para cinema, mas é muito complicado. Há um noção de vida própria na representação que vai para além daquilo que vemos na poesia e na prosa. É muito complicado escrever para teatro e para cinema. SI: Se pudesses ser um livro qualquer já escrito, qual serias? RdS: “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde. É um livro surreal e com uma evolução selvagem. Pensas que vai ser uma certa coisa e acaba por dar-te a volta às ideias, porque é uma obra em que três mancebos extravagantes brincam às artes, às paixões e às ideias e tolices e acaba tudo em assassinato do mais maluco dos três. É um livro alucinante e nota-se que foi escrito pelo Oscar Wilde. SI: Se pudesses ser uma personagem de um clássico ou não-clássico, qual serias? RdS: Em termos de clássicos, seria o Lord Henry Wotton, o amigo sardónico de Basil Hallward em “O Retrato de Dorian Gray”. É o homem das mil teorias e cada teoria é mais mirabolante que a outra. Tem um sentido de humor capaz de picar o seu amigo Basil e o deixar tolo da cabeça. Em termos de não-clássicos, seria Fanshawe, personagem de “O Quarto Fechado”, terceiro romance da “Trilogia de Nova Iorque”. É uma personagem profunda e complicada de perceber no que toca às suas ações e à forma enigmática como fala através das correspondências (e também na parte final da história). Gostava de conseguir perceber essa personagem. Ou então o narrador de "A Voz Subterrânea", de Dostóievski. Gosto da forma seca e imparcial com que o narrador fala do mundo exterior à "bolha" em que ele está. SI: Qual o personagem mais chato que já leste? RdS: O Capitão Beatty, chefe do corpo de bombeiros em “Fahrenheit 451” (Ray Bradbury). É um chefe do corpo dos bombeiros que dá a cara pela missão dos bombeiros de queimar todos os livros e prender todos os que se atrevem a ler livros, mas, ao mesmo tempo, é uma pessoa que conhece os livros todos e, durante o desenrolar da história, vai espicaçando Guy Montag (o protagonista) com argumentos e contra-argumentos sobre as obras de forma a levar o protagonista à loucura. Ainda bem que ele morre na parte final do livro. Menção honrosa para Holden Caulfield (“The Catcher in the Rye”) e para Tom Buchanan (“The Great Gatsby”). SI: Qual o poeta/escritor com o quem não vais à bola? RdS: Isto vai soar a uma resposta comum, mas, embora goste bastante do pensamento político e filosófico dele, não gosto dos livros do Saramago. Tem um estilo de escrita com o qual não consigo encaixar. Em termos de poetas, é mais difícil de dizer um com quem não vá à bola, mas talvez seja Tennyson. SI: Qual a importância dos grandes prémios? Acha-os importantes ou acha que criam pressão sobre um autor através de um mediatismo pouco saudável? RdS: Acho que os grandes prémios são muito importantes para catapultar carreiras, como foi o caso de Louise Glück, a poetisa que ganhou o Nobel em 2020 e que só passou a ser conhecida e traduzida em Portugal após isso. Contudo, acho que os prémios deviam ser mais bem atribuídos e menos politizados e, nesse sentido, o Prémio Nobel é campeão. De facto, os prémios também podem criar pressão sobre os escritores que o ganham, assim como há escritores que devotam uma vida na Literatura para os ganharem. Há escritores que sentem pressão depois de ganharem grandes prémios, pois têm de escrever um livro igualmente bom que corresponda às expetativas dos leitores e da imprensa. Contudo, é uma questão de saberem lidar, porque, de facto, esses prémios catapultam carreiras literárias. SI: Gostaria de ganhar um prémio em específico? Um Nobel, por exemplo? Quais as suas aspirações? RdS: Acredito que muitos escritores gostariam de receber grandes prémios. Seria uma falsidade da minha parte dizer que não gostaria de ganhar um Nobel ou um Booker Prize. Os escritores gostam geralmente de serem reconhecidos pelo seu trabalho e de receber este trampolim nas suas carreiras. Em Portugal, confesso que gostava de ganhar o Prémio Camões, por exemplo, mas isso de ganhar prémios é demasiado ambicioso. Se tiver reconhecimento pelo que escrevo, já é bom. SI: Em jeito de conclusão, que conselho dá a novos escritores e a escritores que ainda estão “no armário"? RdS: Não desistam e tentem melhorar. Sejam críticos de vocês mesmos, mas nunca em demasia. Não deixem que a vossa escrita se deixe dominar por sentimentos e tenham um pouco de frieza para que a vossa escrita não se torne melosa. Leiam muito e não tenham medo de imitar os vossos heróis literários, porque não há criação sem, antes de tudo, haver uma imitação. Apoiem os novos escritores e os escritores no armário e ajudem-nos a formarem o seu estilo. Façam intercâmbio de ideias com eles. Nos dias de hoje, a cultura é mais importante que nunca e a ficção é precisa neste mundo de realismo excessivo. Precisamos de novos escritores na literatura, de novo sangue nesta luta pela revalorização da Literatura, da Cultura e das Artes em Portugal. Precisamos de pessoas a frequentar os cursos superiores ligados às Letras. As Letras são muito importantes na manutenção de uma sociedade. Lembro-me de ouvir um antigo professor meu dizer que "Engenharias, Medicina, Direito e outros são áreas muito importantes, mas que, sem as Humanidades, as outras áreas não podem sobreviver". Eu concordo com esse professor. Precisamos de uma força humanista no mundo e as Letras entram aí, a Literatura entra aí, a Filosofia entra aí. E por aí fora. Não desistam nunca da Literatura e da escrita. Juntos, venceremos.
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AutorPedro Maia Histórico
Janeiro 2022
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